Francisco Dias da Silva.
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Foto de Felipe Gonçalves. |
BIOGRAFIA DE FRANCISCO DIAS DA SILVA.
Extraído do livro: (Mangabeira Nas Artes Nas letras no mundo de Dias da Silva).
Francisco Dias da Silva abriu os olhos e chorou no quarto escuro de uma casa de tijolos (perdeu o status depois: foi para a casa de taipa sem reboco, na Barra de Candinho). Porque nasceu no sítio Lajes, do conhecido Thomaz de Lemos.
Uma coisa bem verdadeira: a gente tem mais tempo de vida é quando nasce. Daí para a frente é só tirando dia. Diminuindo a vida. Pessimismo? Ora, pessimismo. É a verdade que muita gente não quer aceitar ou sobre que busca enganar-se. É, daí em diante, não há mais soma de tempo. Cada segundo que passa (não esquecer que a gente é que passa) é segundo subtraído. Em sendo concebido, a gente começa a caminhar para o fim. A perder tempo. Não há, contudo, por que a gente se assustar. Pois "a morte não é nada trágica. É simples e certa. É correta. Se a vítima tiver um pouco de calma, pode morrer sem nenhum sofrimento, apenas um mal-estar suportável". Mas não é sobre a morte que se quer falar. É sobre a vida. Sobre o nascimento do FDS. Porque ele nasceu no Sítio Lajes. Bonito. Cheio de cana. Verde. De pendões brancos balançando ao vento. Não se pode dizer que era um paraíso. Nem deu tempo de conhecer o Sítio. Recém- nascido, sem saber o que era bonito ou feio, sem conhecimento do mundo, levaram-no para outro sítio. Para a Barra. Do avô Candinho. Pai do seu pai. Gente honesta como o conhecido Thomaz de Lemos, bisavô.
Alguns anos depois, ao começar a ler o mundo, viu que o Sítio Lajes era bom. Nos invernos. Na moagem. Na casa grande da avó Talina. Nas noites de fogueiras, no terreiro da casa. Pés de cajarana amarelos. Tanta banana maçã, doce doce. A Barra só não tinha cana, mas era tão bonito quanto. Baixio Largo. Bonito nas enchentes. O arrozal amarelando. O avô cuspindo honestidade.
Já é tempo de dizer o dia do nascimento: seis de fevereiro de 1938. Nossa! O cara já está muito dentro do tempo. É já um privilegiado. Ultrapassou a média do brasileiro. Já tem saldo. Quem o ajudou a nascer foi Maria José (Mãe Velha). A mãe o teve em quarto de casa pobre. À luz da lamparina. Longe de hospital. Sem médico por perto. Gente assim é que merece título de cidadão disto e daquilo. É que merece medalha. Pela coragem e heroísmo. Sim é verdade: quanta medalha por ai em pescoço errado. O mundo nunca vai reconhecer heroísmo assim sem fama. Sem nome em jornal. Sem rosto em televisão. Sem platéia. Lá numa casa escondida dentro do mato. E saber que essas pessoas são verdadeiras heroínas. A mãe de FDS é uma mãe assim.
Ainda nos cueiros - não havia fraldas e se as houvesse não as usaria - foi levado para outro lugar. Para outro pé de Serra. Para uma casa de taipa de chão batido. Porque FDS nasceu nas Lajes e logo foi para o Sítio Barra.
Ao pé do serrote foi crescendo. Infância pobre. Feliz todavia. Bem despreocupada. Sem brinquedos eletrônicos. Feliz porém por poder puxar um carro de talo de milho. Por poder chutar uma bola de meia. De correr pelos terreiros num cavalo de pau. De poder tomar banho no açude em águas limpas e sem poluição.
Chega o tempo de escola. Poucas lembranças tem da primeira escola. Lá para as bandas do Taquari. Na casa de Antônio de Agostinho. Lá num alto. A primeira professora - nunca esqueceu a primeira professora. Maria, Maria de Claudino. Tão jovem. Tão bonita. Tão humana. Sabia cuidar do aluno. Para ela o aluno era gente. Deve ser tratado como gente. FDS hoje dá graças a Deus por tê-la ainda viva. Cheia de vida. Vencendo o tempo corajosa e atenciosa. Por que professora assim - e são tantas por ai afora - não recebem medalhas? Honra ao mérito? Por que não se escrevem seus nomes no jornal? Por que seus rostos nunca saem na televisão? E são tantas! Seu aluno professora Maria, lhe renova o agradecimento sincero. E lhe coloca no pescoço uma medalha invisível.
Grupo escolar de Araripe. Porque FDS estudou no Grupo Escolar daquela cidade. É o cara foi longe. Por pouco tempo. Uns três anos. Era assim: a turma entrava em fila para cantar o Hino Nacional. Crianças e jovens eram patriotas naquele tempo. Tinham de ser. Querendo ou não. Bem, também não é assim. Todo mundo aprendia a ser patriota. Era patriota. Havia respeito á Bandeira Nacional. Hoje há os que nem sequer notam a presença da Bandeira. Pisam a Bandeira. Rasgam a Bandeira. Entretanto lá dentro bem dentro tem patriotismo. Guarda respeito. É.
Não se lembra do livro em que estudou. Só dava lições. Se não... Bem houve outro professor depois. Antônio José de Lima. Chamado Antônio de Zuca. Inteligente o professor Antônio. De muita leitura. Poeta. FDS guarda alguns sonetos dele. E alguns escritos. Os alunos gostavam do Mestre Antônio. Hoje - que carrasco que é o tempo - o professor Antônio não conhece mais ninguém. Nem seu antigo aluno. É verdade: o tempo lhe está sendo tirano. Roubando-lhe tudo: Visão. Movimentos. Apagando-lhe o raciocínio. Como que vegeta apenas. A velhice é o preço que a gente paga pela vida longa. O professor Antônio está pagando um preço muito alto. A vida é assim. A vida dele é assim. Pronto. Ele nem sabe que todos os dias o aluno FDS lhe põe um diploma de Honra ao Mérito ao seu lado sem que ninguém note. Nem ele.
Pois bem: na escola de Antônio de Zuca, FDS escreveu o primeiro bilhete. Conseguiu arrumar duas ou três frases. Quanto esforço para fazê-lo: "papai estou axando muito bom aqui nesta escola do Antônio e também na casa de Anania.
Aluno Francisco Ivonildo Dias". Só isso e desse jeito. Primeiro texto escrito. A estréia nas letras. Para completar o quadro o escritor emergente foi deixar o texto em sua casa lá na Barra entregando-o pessoalmente à mãe. A mãe que não sabia ler leu com os olhos e ficou embasbacada. O orgulho saindo pelo rosto de mãe envaidecida. E chorou só de ver aquelas letras formando palavras num pedaço de papel. Pensou com certeza estar diante de um gênio. De um artista que o mundo precisava conhecer.
(Minha mãe Deus lhe pague. Você sem saber ler traduziu com os olhos aquela engrenagem linguística. Foi você a única que me aplaudiu e me pôs no pescoço a medalha de ouro. Suas lágrimas para mim gritavam louvores ao filho escritor. Eu minha mãe ouvi Palmas naquela hora. E pensei que você pensou que eu seria um escritor depois. Pois é minha mãe. Não cheguei a ser escritor para o mundo. Para você tenho certeza tenho certeza sou o escritor maior. E isso me basta. Naquele instante você me deu tanta força para caminhar. Estou caminhando Mãe Didia estou caminhando (Como você ainda caminha graças a Deus) sempre na tentativa de rabiscar coisas. Deus lhe pague tudo).
Com 12 anos entra para o seminário. Seminário São José do Crato. O casarão vetusto. De muitos anos. Já. Em 28 de fevereiro de 1950. Foi como se penetrasse em outro mundo. Como se caísse no desconhecido. E não era para menos: da roça para a cidade grande. Do isolamento da Barra para a vida de comunidade. De tanta gente desconhecida. Com outro padrão de vida. Com outros gostos. Com outras atitudes. De formação diferente. Peixe fora d'água. Assim foram difíceis os primeiros dias. E os outros seguintes. Quase insuportáveis. O encabulamento jogando-o para os cantos. A saudade de casa e de todos de casa ardendo por dentro. A vontade de fugir tomando vulto. Foi de lascar realmente.
Começou o nível mais baixo. Quase analfabeto ainda. Apesar das dificuldades foi crescendo. Primeiro ginasial até o oitavo. Decorava tudo! Regras de gramática. Eduardo Carlos Pereira. Monsenhor Rocha queria tudo na ponta da língua. Eta professor para saber português! História do Brasil e do Ceará. Minhas Lições de Filgueiras Sampaio. Aqueles livros de capa amarela de Filgueiras Sampaio. Bonitos, ele os achava bonitos. Bem novinhos. O cuidado para não sujá-los. Para não escangotá-los. Tudo na decoreba. E tome nota boa. Nota 10 sem acabar mais. Dez nisso. Dez naquilo. Dez naquilo outro. Só de decorar. De decorar só para prova. Depois, logo depois tudo desaparecia da mente e ficava novamente sem saber de muita coisa. Quase analfabeto de novo. Espere ai amigo. Quem está escrevendo sobre si mesmo? Não é o próprio? Então por que terceira pessoa? Deixar de besteira. É usar a primeira pessoa: eu meu etc. Daqui para frente a narrativa vai ficar na primeira pessoa verbal. Assim: Cheguei ao oitavo ginasial sem haver lido um livro que não fosse o didático: Gramática, história, geografia. E nem podia, a não ser que se tratasse de livro de história de Santo. A ficção, por exemplo, o romance nem pensar. Entretanto no último ano de seminário, no Crato, um colega me mostra, no pelo debaixo dos panos, "O Confiteor", de Paulo Setúbal. Escondido, o cuidado no rosto, comecei a ler o prefácio do Padre Leonel Franca. Prefácio bem escrito. Bem feita a análise do escritor de Tatuí. E a leitura me foi agradando. Aguçando-me o gosto. Li o Confiteor de uma assentada. Todo admiração. Foi o primeiro encontro com a literatura. Valeu a pena. Você vai gostar de ler O Confiteor.
Dois motivos me deram alento e entusiasmo. Primeiramente o fato de tratar-se de leitura proibida. O que a gente não pode fazer, a gente quer sempre saber por quê. A curiosidade se afina. E a gente enfrenta o perigo. Paulo Setúbal era censurado.
Até mesmo fora do seminário. Em segundo lugar o estilo de Paulo Setúbal. A frase curta. Contundente. Uma adjetivação de causar inveja. De uma adverbialidade original e forte. Pois bem: o livro me acordou o gosto pela leitura. Porque com o livro me identifiquei. Porque me trouxe emoção. Porque me levou ao prazer estético. Depois de O Confiteor passei a ler toda a obra do escritor paulista: A Marquesa de Santos, O Ouro de Cuiabá, A Bandeira de Fernão Dias, Os Irmãos Leme, O Principe Nassau, Alma Cabocla. E outros. Treze volumes de história. De história do Brasil romanceada. Verossímil e sobretudo, verdade por fundamentada em fatos e feitos de nossa história. Delas já foram lidas por mais de três vezes. Por nove vezes, já li O Confiteor. É assim: você precisa descobrir o tipo de leitura que lhe agrade. Porque o único conselho sobre leitura que uma pessoa pode dar a outra é não seguir conselho. O negócio é você mesmo descobrir. A leitura é algo de escoha. É descobrir o livro onde você se encontre. Que seja estímulo e irritação. Que produza na alma do leitor uma emoção especial. Ainda bem que ninguém nunca me pegou lendo, por exemplo, "As Maluquices do Imperador". Proibido? Por quê? O escritor paulista não cometeu falta alguma por haver escrito a obra que deixou. Também não o fiz pelas leituras. Como proibir a arte? De fazer arte? Como proibir o Belo, que é o que agrada sem noção? Não parei mais de ler. E vieram outros autores: José de Alencar. Iracema me botou emoção forte na alma. Jorge Amado. José Lins do Rego. Rachel de Queiroz, e tantos outros. Deixando o seminário, em 1959, fui professor, por pouco tempo, na Escola Agrotécnica de Lavras da Mangabeira. Naquela cidade, valeu-me a companhia dos livros. Foi na biblioteca pública - nesse tempo havia biblioteca em Lavras - que intensifiquei a leitura. Todos os dias. ia lá conversar com personagens. Caminhar o mundo. Conhecer as dores do mundo. Havia o jornal Unitário onde eu lia a crônica de João Clímaco Bezerra. Como eu gostava de ler os textos do autor de "Não há Estrelas no Céu".
Por essa época, iniciei a redação de alguns textos, em papel almaço. Só para guardar mesmo. Coisas soltas. Sobre um enterro. Sobre uma criança que pede esmola. Sobre uma cena do dia-a-dia. Como o dia-a-dia é rico em cenas! Sem qualquer pretensão de publicação. Só pelo gosto de escrever. De tentar aprender a escrever. (Nunca aprendi. Por isso tudo vai saindo sem ordem. Doidamente). Só pelo gosto de registrar alguma coisa. Pois tudo não valia muita coisa, não. Em Fortaleza, a partir de 1960, continuei com a mania de colocar tudo no papel. A emoção quase me derrubou ao deparar o primeiro texto estampado no jornal. Na Gazeta de Notícias. Lá estava o título. Bem grande. Tomando espaço. Embaixo meu nome. Não quis acreditar no que estava vendo. Cheguei a pensar que havia alcançado a glória. O orgulho inchou no peito. Sai por ai em fora mostrando a crônica. Como sem pisar o chão. Como levando o troféu. Como a gente se envaidece por pouco. Também como por pouco a vaidade da gente cai e não vale nada.
Uma crônica minha no jornal. Não, não podia ser. Eu um cara saido do mato, pobre, lascado, não. Não podia ser. Era já estar muito lá em cima. Tentei outras vezes repetir o feito. Outras asneiras foram saindo. E as pessoas iam tendo a coragem de publicá-las. Tribuna do Ceará. Unitário. O Povo, Diário do Povo, do escritor e jornalista corajoso Jáder de Carvalho. Certamente, por ser revisor, no momento, desse jornal, O grande poeta e romancista deixou passar - A Noite das Fogueiras - texto modesto sobre as estrelas que o céu empresta à Terra que são as fogueiras na noite de São João, pelo sertão. Só no Sertão porque pelas cidades grandes o progresso apagou o fogo das fogueiras que alumiavam a alma das pessoas. Hoje está tão escuro dentro da gente. É: o sol lá fora tão claro e em minha alma anoitecendo...
Outra emoção foi no dia em que vi meu nome entre os aprovados para o curso de Direito. Não, não foi bem emoção. Só entusiasmo pequeno. Pois o vestibular de Direito, fi-lo por fazer. Mais por influência. Daí o malfeito do curso. Estudando pouco. Sem poder ter o livro. Ia passando, apenas passando de ano a ano. Até a formatura. Não pensava em advogar. O Que fazia com gosto era ler. Rabiscar coisa e ser revisor de jornal - do Diário do Povo. Em dezembro de 1964, conferiram-me o diploma de bacharel em Direito. Em Ciências Juridicas e Sociais. Nunca, porém, me inscrevi na Ordem - OAB - CE. Não queria advogar. Não sabia advogar, Tanto que, logo a seguir, fiz o vestibular para Letras. Queria ser professor. Ou melhor: queria ser sofredor. Porque, no Brasil, professor é sinônimo de sofrimento. Vou repetir aqui o que acho do professor e do aluno brasileiros - o professor é santo e o aluno é gênio. Gênio - porque é o único aluno no mundo que aprende sem livro e santo - porque é o único professor no mundo que ensina de graça. Em 1969, registro de licenciatura em Letras. Pela Faculdade de Letras da UFC. Cheguei sim ao fim do curso com entusiasmo. Os professores de Letras me botaram motivos e vontade. Gostei do curso. Gostava de lecionar. Precisava lecionar. Complementar o orçamento, porque eu tinha um emprego federal. Como Assistente de Educação do MEC. Não era nada de grande coisa. O nome é bonito mas as atividades são tão humildes. Por essa época, comecei a escrever comentários leves sobre livros, romances, contos, crônicas, poesia, ensaios. Impressões de leitura. Anotações de pé de página. Longe da pretensão de fazer crítica literária. Nem saberia fazê-lo. Nunca fui capaz de tanto. Agora sempre pensei que a crítica literária científica técnica em obediência às teorias várias é feita mais para o próprio crítico ler e mais alguns poucos do grupo. Por isso é melhor o simples comentário subjetivo só de impressões mas que acorda no leitor o desejo de ler o livro em pauta. É o que escrevo são as reações minhas frente às leituras. Todo mundo tem o direito de agir e de reagir diante do enredo de um livro. Assim tem gente que sente. Tem gente que não sente nada. Fique lá o crítico com suas teorias criadas em gabinete e laboratórios e escolas e eu continuo aqui com as anotações de pé de página. Pois elas têm levado o leitor a buscar o livro. Isso é bom. Consola a gente. Em face das inúmeras impressões de leitura publicadas em jornal, houve quem teve a ousadia de sugerir-me juntá-las em livro. Enchi-me de entusiasmo. A vaidade me ardeu por dentro. E achei que era bom mesmo. Fui criando coragem. Nossa! Um matuto - só porque estudou, deixa de ser matuto, não senhor - querendo fazer um livro. Querendo publicar livro. Pois bem: juntei um pouco de vaidade ao talento de Artur Eduardo Benevides, de José Alcides Pinto e Batista de Lima, e, em 1981, foi lançado "Ficção e Poesia ( em colaboração com esses autores citados). Foi como uma injeção de entusiasmo. A coragem cresceu. Fiquei ousado. E, no mesmo ano (1981) lá vem "Da Pena ao Vento - I" - (Anotações de Pé de Página). Simples coletânea de impressões de leitura de autores cearenses. Comentários sentidos e humanos. Houve quem gostasse do livrinho.
No ano seguinte - 1982 - jogo para o mundo ou melhor para o vento - "Da pena ao Vento - II" (Anotações de Pé de Página). Trinta livros - romance poesia conto crônica ensaio - em comentários - notícia.
Padre Nonato meu tio engraçado e sério. Engraçado e honesto. Engraçado e piedoso. O padre Nonato. Teve uma vida coerente. Cheia de passagens dignas de registro. Sem cronologia, de maneira desordenada, com erros e omissões escrevi, em 1982, "Um Padre e Muitas Proezas" (cortes de vida). Achava que já havia espalhado besteira, mediocridades tantas. Uma trégua seria salutar. Dois anos sem publicar nada. Entretanto cheguei à conclusão de que o vento havia levado tudo e abria espaço para mais coisas sem valor. Realmente em 1984, foi a vez de "Cenas, Lições e Coisas", livrinho de crônicas. Cenas do dia-a-dia. O autor ficou recompensado porque apareceu alguém para ler os textos e até gostar das croniquetas. "Da Pena ao Vento - III (Anotações de Pé de Página) veio à tona em 2001. A fome do público. Que fome de público que nada. Veio à fome do vento que tudo carrega. Não sei pra onde. É, o tempo apaga o que é bom, mas também apaga o que é ruim. Não perdoa nada. Sobretudo não perdoa o que a gente faz sem ele. Pois é: mais trinta livros debaixo de minhas reações de leitura. Assim já cheguei a 90 livros comentados. Tem mais: tenho a coragem de dizer que está vindo por ai o Da Pena ao Vento - IV. É muita ousadia. Haja vento para espalhar tanta coisa inútil. "Pedaços de Vida e Outras Coisas em Pedaços", publicada em 2002, é um livro de reminiscências, contadas de maneira simples, espontaneamente, em linguagem bem do cotidiano. Bem do povo. Só um tanto ou quanto correta. Batista de Lima disse muito acertadamente. "é um livro terno, singelo em que as memórias de Dias da Silva vão fluindo de forma cronológica". F.S. Nascimento escreveu: "... recebi sua mais recente produção literária, com essa obra estabelecendo um avançado marco no gênero da memorialística". Como palavras assim botam entusiasmo dentro da gente.
É, amigo, você já sabe. Nasci dentro do mato. De onde em onde chego a dizer em brincadeira - será? - que não era para ter deixado o mato. Por que me tiraram de lá? Por que me roubaram a Santa ignorância? Por que me afastaram do contato com a natureza? Com as árvores? Com os córregos límpidos? Das melodias eternas dos pássaros? Por que me afastaram de Deus? Sim, porque Deus? Sim, porque Deus está no silêncio das florestas. Na brisa sem poluição dos campos. Pelos baixios verdes. Aqui acho que já cresci demais. Tenho medo porque quanto mais a gente cresce, a queda cresce também. O fato, amigo, é que me assustei comigo mesmo. Nossa! Subi demais. Cheguei a ser Técnico em Assuntos Educacionais do MEC. Bem, só no nome porque de técnico não tinha nada. E a técnica é que está trazendo muita confusão. Complicando tudo.
Hoje, sou aposentado do Ministério da Educação. "Vagabundo", na classificação do presidente. Que coisa: 35 anos de trabalho e ser vagabundo. Se ao menos fosse vagamundo. Sim, porque todos nós somos vagamundos. Viver é vagar. Viver é vagar pelo mundo. Só passando. Só passando. Estamos só passando por este mundão. Agora para quem não faz nada (trabalha, ás vezes, um mês, dois, três, e se aposenta) a denominação é cabível. E há deles assim. Não se sabe se por ironia ou não. Sei: é sorte, é ajeita-aieita. O nosso chefe é também "vagabundo". A diferença é que a aposentadoria dele é gorda e a nossa é quase nada. Tão fina. Tão raquítica. Tem mais: fui mais alto ainda. Delegado substituto da DEMEC-CE. Já pensou. Como sair do mato e voar tão alto? Sempre achei que não estava preparado para vôos tão altos. Mas a gente tem de teimar e arriscar em voar. Antes que se olvide, mas fui mais coisas. Membro ( imortal) da Academia Cearense da Língua Portuguesa. Cadeira 38.
Nunca fui com esse negocio de imortal. Sócrates disse que não cohecia lugar algum onde não se morresse. Quem é de Academia morre também. Não tem jeito. A morte acha a gente em todo canto. Até mesmo na imortalidade das academias. Tanto que mandei uma carta-renúncia, nunca aceita e parece que continuo ainda hoje "imortal". Não sei até quando. Veja o amigo se ainda sobrou coragen para leitura dos textos seguintes. Post Scriptum - Nossa! Eu quero tanto bem a meu pai. Já disse tanta coisa sobre ele (e ainda há muito mais) e parece que não lhe disse o nome dele. Pois o nome dele é JOSÉ CÂNDIDO DE LIMA. De minha mãe, eu disse alguma coisa nestas páginas, mas também esqueci-lhe o nome: é VICÊNCIA GUEDES DA SILVA. Agora está tudo bem: sou filho de José Cândido de Lima. ( eu pensava que era José Cândido Dias) e Vicência Guedes da Silva. Vocês não imaginam o tamanho do bem-querer que Ihes quero...
Agora é que não sobrou coragem para ler os textos à frente. Tem nada não. Os textos não vão se importar mesmo Com isso.
CONFISSÃO DE MENTIR0SO.
(Extrato de Cenas, Lições e Coisas. Crônicas. 1984)
Sou mentiroso. Grande mentiroso. O que consola é que não sou apenas eu quem mente. Absolutamente. É gente mentindo. Muita gente mentindo por ai. Quase todo mundo.
Desculpe-me o leitor a franqueza... mentirosa. Não me bata
por isso. Não me queira mal por isso. Mas você é também mentiroso. É você que me lê. Este ai que não gosta do que escrevo. Esse lá que me acha feio. Aquele lá, que, se me conhecesse, já me teria mandado para outra dimensão de vida. Aqueloutro que me admira porque chamo todos de mentirosos. É isto mesmo, todavia: todo mundo mente. Uns, mais. Outros, menos. Mas todos. Não sei o que você pensa a respeito. Faço apenas uma confissão. A minha confissão mentirosa. Porque eu minto. Você nem sabe quanto. A Cada instante cuspo um montão de mentiras. Pode estar certo! Só não mentimos ao dizermos que somos mentirosos. Os meus atos, os seus, os gestos seus, os meus gestos, a alegria minha, a sua alegria, o seu sorriso, o sorriso meu, tudo é mentira. Tenho pena de você. Não, não é bem pena. Aliás, nem posso ter pena, porque você mente também. lgual a mim. Nossa! Termino é tendo pena de mim, de você, de todo mundo.
Por quê? Porque sou obrigado a mentir para você. Pra mim você é obrigado a mentir. Para meu inimigo. Para um velho que me analisa demorado. Para uma criança que me abraça inocente. Para o jovem que me acaricia conm mãos de fada e me beija com lábios mornos e macios. Para a mãe que me ataga carinhosa. Para o caridoso que me estira o braço. Para o perverso que me causa nojo. Ao que me consola. Ao que me desalenta. Para o rico e para o pobre. Para o sabido e para o ignorante. À natureza que me sorri. Ao mar que me murmura com sua linguagem surda. À estrela que faísca no firmamento. Sim, para tudo isso você mente e eu minto.
Minto e você mente - quando a gente sorri estando a chorar por dentro.
Minto e você mente - quando a gente diz que é feliz e não falta nada, pois jamais haverá a felicidade completa e sempre falta alguma coisa na vida.
Minto e você mente - quando perguntam como a gente vai e se responde que tudo está bem.
Minto e você mente - porque se busca sempre parecer Alegre, quando dentro da gente vai melancolia surda e a dúvida secreta.
Minto e você mente - quando se agradece alguma coisa porque agradecer é a melhor forma de pedir.
Minto e você mente - porque ao faminto que pede algo a gente logo dá pra poder ver-se livre.
Minto e você mente - quando a gente se compadece de alguém que sofre: o compadecer-se é a maneira hipócrita de se externar a indiferença.
Minto e você mente - quando a gente parece detestar o elogio, pois o que se deseja, lá no intimo, é mais elogio e mais louvação.
Minto e você mente - quando a gente diz na oração: perdoa-me como perdôo aos devedores - ninguém perdoa ninguém. Minto e você mente - quando pisam o pé da gente pedem desculpa e a gente desculpa. O coração da gente está lá como uma panela no fogo: em ebulição e queimando.
Poderia continuar com a ladainha interminável de mentiras. Vou prosseguir, contudo. Porque me esqueci de mencionar outro modelo de mentira - a da sociedade que mente mais do que eu e você, juntos. E ainda tem a mentira política. Ai é onde se se é mais mentiroso ainda. Dão-se lições de Mestre de mentiras. E pensar que sou político. Você também o é. Nem que não queira. O homem é um animal político. Por natureza. Por essência. Só que o Político é mentiroso por fazer politicalha ou politicagem. Por exemplo: o Politico no Brasil quando abre a boca é para dizer mentiras.
Assim: Minto e você mente - porque a gente é político no Brasil e não o seria se não mentisse.
Minto e você mente - porque a gente promete o mundo de coisas e nada realiza.
Minto e você mente - quando a gente afirma que será justo com os injustiçados (quase todo mundo). Entretanto torna-se um dos piores injustos pois é quem vai legislar e a justiça hoje não é outra coisa senão a lei do mais forte. Quem vai redigir uma lei contra seus interesses?
Minto e você mente - para se poder continuar dentro da mentira.
Terminei escrevendo um mundo de mentiras. E não pode ser de outra maneira: como proferir a verdade se a gente mente até dormindo? Só quem não nasceu é que não mente. Ora não. Ai é que mente. Porque não nascer é a mentira de si mesmo. O não existir é a negação da vida - portanto a mentira da existência.
Bem, parar por aqui. Tenho medo de acabar dizendo uma verdade.
QUEM DEVE TERA CABEÇA RASPADA?
(Do livro de crônicas - Cenas Lições e Coisas. 1984)
Quando se folheiam jornais para ler notícias boas e bons comentários - sobre o delicado momento nacional e fiéis interpretações dos acontecimentos cotidianos - deparam-se artigos e textos de substanciosos conteúdos mentais. Para tanto têm-se conceituados jornalistas e escritores que merecem admiração e crença. Que reclamam respeito e acatamento. Não se pode fugir, contudo, do encontro de páginas tristes. Com páginas que desagradam e repugnam. Que falam de violência. Que lembram sangue. Que mostram como anda o cérebro humano. E o pior: há predominio do ruim sobre o bom. Das colunas feitas de crimes. De assaltos repentinos. De sequestros perversos. De arrombamentos cruéis. De furtos tantos. Tudo em manchetes vistosas. Chamando a atenção de todo mundo. Mas não é só isto. O leitor depara fotografias e clichês estampando homens mutilados. Deles cheios de chagas. Deles de cabeça raspada. Aquilo nem é cabeça: dir-se-iam cocos despelados. Daqueles que se vendem pelas feiras livres. Nas bancas dos mercados. Nas mercearias pequenas das ruas estreitas. São os ladrões pequenos. A cabeça raspada é a identidade dos que levam coisas de pouco valor: uma galinha do poleiro do vizinho. Uma laranja meio podre à porta do botequim. Uma manga amarela no quintal ao lado. É verdade: é o sinal do indesejado. De fora do meio. De um criminoso. Raspar cabeça é o grande castigo imposto a estes modestos amigos do alheio que muitas vezes, já são vitimas da sociedade, que, por abstrata e imaterial, jamais terá raspagem nenhuma. Bem, outros tantos por ingratidão do destino ou ironia da sorte. Vitimas sim da sociedade que lhes tira as oportunidades. Por haver fugido às obrigações. Por haver-lhes sugado as forças. É a selvageria que os descaminha. Que os leva ao infortúnio. Que os Condena depois. E ai está: a exploração crescendo. O mais forte pisando o mais fraco. O esperto tirando tudo do ingênuo. O que acontece em qualquer circustância. Em qualquer regime. Onde houver duas pessoas, uma está tirando alguma coisa da outra, de alguma maneira. Mas ter a cabeça raspada é pena ingrata. Pesada. É: estes pobres ladrões anônimos, capturados, têm todos o mesmo destino - Cadeia acotovelada de gente e cabeça raspada. Para que o mundo os veja. Para que a sociedade os despreze e odeie. Guardados numa cela pequena e suja. Sem dúvida: deles há perversos. Impiedosos. Chegam ao absurdo de matar para roubar. Por coisa tão banal. E matam perversamente. Desumanamente. Ninguém se revolta por vê-los descabelados. A cabeça exposta ao vento. Pelo contrário. Tornam-se repugnantes. Ninguém pensa que, muitas vezes, são necessitados. Dos que nasceram sob um signo mau. De quem não teve outro caminho, senão tirar, mesmo involuntariamente, o que não lhe é devido. Talvez para não sucumbir-se. Para não ouvir o choro do filho com fome. A cabeça raspada, a vitima vai para a cadeia. Ocupar quartos sujos e sem luz. Porque tirou de quem já tem tanto. Ou de quem, muitas vezes, já tenha roubado mais que ela. Em absoluto, não estou querendo dizer que estas pessoas devam ficar impunes. Ninguém tem o direito de suprimir de outrem qualquer bem. É preciso que haja repressão. O castigo. A pena. Mas por que não se busca evitar a se chegar a tanto? Pois é: para quem rouba pouco, tem punição. As cabeças são raspadas. Cadeia preparada. Cela escura e mal-cheirosa. Amigo leitor, e para os outros? Para os ladrões grandes - quem rouba pouco é ladrão quem rouba muito é barão - para os ladrões de gabinete e engravatados de ar-condicionado não há cadeia.
Quando tem, é todo conforto. Às vezes é melhor do que em sua própria residência. Com muito mais regalias. Cabelos bem feitos e penteados. O roubo recebe o nome de desfalque. É desvio. O castigo é um inquérito ou uma CPI (que sempre inocenta os criminosos). Só para deixar transparecer ao povo que os grandes também recebem pena. As (medidas cabiveis) não surtem efeito e, no fim, dão-lhe promoções e recompensas - viagens e outras coisas - por erroneamente haverem sido vítimas de tantos vexames. Quem são? São os que tiram dos cofres públicos. Os que exploram e deixam tantos na miséria. Os que não aplicam convenientemente as polpudas verbas oficiais. Os que desviam tudo. Os que superfaturam tudo. Os que pegam dinheiro muito para obras que nunca constroem. Para esses não há cadeia. Andam pelas ruas despreocupados. Nada sofrem. Dão-se-lhes medalhas e comendas pelo talento, pelo tino administrativo. Pela inteligência e pela criação. Por que não se lhes raspam as cabeças? Assim todos veriam os verdadeiros ladrões. Daqueles que tiram do povo e dos necessitados. Entretanto, se se lhes depelassem as cabeças, as ruas ficariam cheias de cocos ambulantes - paralelepípedo diferente - e as cadeias não comportariam tantos ladrões de gravata.
Foto de Soleiman Dias. |
Foto de Mangabeira S. José |
Foto do Youtube. |
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