João Gonçalves de Sousa.

Foto de Pedro Luiz de Oliveira.

JOÃO GONÇALVES DE SOUSA.

Fonte: (Extraido do Livro Mangabeira nas artes nas letras no mundo de Dias da Silva).

Há pessoas que de tão singulares e importantes, que escrever tudo a seu respeito não diz tudo ainda. João Gonçalves de Sousa foi uma pesoa assim. Realmente não é fácil esgotar-lhe as qualidades. Defeitos também? Claro que os teve. Quem não os tem? O ser humano é falho. Errar é humano. É cheio de imperfeições. Para encontrá-los, contudo, em João Gonçalves (Juca era assim chamado na Vila São José), ter-se-ia que catá-los com cuidado. Como se busca agulha no palheiro. É verdade: foi um homem inteligente. Pessoa simples. Humana e amiga. Um homem bom e humilde. É, toda esta ruma de adjetivos faz o retrato de João Gonçalves. Inteligente e humano já dizem coisa muita. Que fiquem todos para qualificar melhor o nosso conterrâneo. Porque tudo isso ele foi. Sobretudo para São José. Para seu povo pobre e carente. Para o Ceará. Para o Brasil. Para o mundo. Muito bem. A Vila São José teve sorte. Uma gente agraciada com o nascimento de personagem tão singular. Sua figura levou o nome do lugar para bem longe. Pelo País. Por fora do País. O ano foi longínquo: 1913. Vinte de agosto de 1913. Ah, bicho carrasco é o tempo. Não passa e faz a gente passar. Só tira as coisas da gente: visão, saúde, movimento, vida. João Gonçalves de Sousa viveu uma vida simples. Vida aberta. Lutou em criança. Todo mundo sabe o quanto sofreu. Dos embates que enfrentou. Das quedas e soerguimentos por que passou. Também de suas vitórias. João começava já a trabalhar para os outros mais do que para si. Sem dúvida: sua vida forma uma história bonita. Cheia de altos e baixos. De empecilhos e de barreiras. Deles quase impossível transposição. Venceu tudo. Só não pôde vencer a morte: ela o derrubou tão cedo. Joaquim Gonçalves de Sousa e Joana Batista Passos foram seus pais. Pessoas simples e pobres. Porque João Gonçalves teve uma origem humilde. Foi um humilde e pobre. "Meu pai trabalhou na roça, morreu com a enxada na mão,  mas limpo na vida e no coração". Pois bem: humilde e simples, com esforço e com trabalho, com suor e com lágrimas, João Gonçalves cresceu na vida. Chegou tão alto, lá por cima. Aqui dentro e lá por fora. Entretanto jamais lhe aconteceu esquecer-se de onde veio. É verdade: nunca olvidou suas origens. Mesmo lá no topo, no triunfo, em meio aos aplausos e às ovações, lá estava João Gonçalves pensando em São José. Pensando em seu povo carente e sofredor. Pensando na pobreza que deixara para trás e que havia carregado sempre. Não se aproveitou do prestígio conquistado para engrandecimento próprio. Tantos, sabe-se, que não sabem crescer. Na ascensão para o fausto e para a fama, esquecem os que vão ficando pelos caminhos. Envergonham-se de suas origens. E tudo vai sendo substituído: lugares, colegas, amigos. João Gonçalves teve uma infância sofrida. Estudando na escola de mestre Paulo. Em São José. Estudo e roça. A vender água pelas casas da vila para ter alguma coisa. Para poder ajudar em casa. Com um pequeno jumento, latas d'água na caçamba, suado e molhado, se molhando e suando, a carga por um tostão. Já ia ganhando alguma coisa como suor do rosto. De porta em porta, levando água da cacimba da pedra. Depois,roça, com tantos espinhos, terra seca e sol ardente. Pois é: aprendeu as primeiras letras, o ABC, na escola do professor Paulo. Lá na cadeira, sentado, palmatória à mão, severo e exigente. João Gonçalves, aos poucos, ia-se revelando inteligente. Aluno bom. Estudioso. Um lutador. Sobremaneira, um esforçado. Eram os primeiros sinais da vontade de vencer. Entretanto, para crescer mais - era esse o seu destino - precisava deixar a Terra natal. De ir para bem longe, carregando pobreza, dificuldades, sem contar as incertezas, a saudade. Mas tinha coragem.
Com certeza, custou-lhe deixar a Vila. Assim logo para bem longe. Assim para o desconhecido. Largar o aconchego dos pais pobres. Dos colegas pobres da escola de Mestre Paulo. Deixar os pais no trabalho diário. Deixar de levar água à sede de tanta gente. Tinha de deixar tudo isso para estudar no Ginásio Diocesano do Crato. Foi mais ou menos assim: um dia, a sorte lhe joga no caminho o padre Osvaldo Pita, lá pela Vila. (Foi ele quem lhe abriu o caminho para o Ginásio do Crato). Foi um dos primeiros a sair para o mundo grande. Foi assim como um bandeirante e desbravador corajoso. Porque outros, ao depois, caminharam sua trilha. Mais outros seguiram suas pegadas. Também tão corajosos quanto. Tão desbravadores quanto. Longe, superando tudo isso. Devagar. Superando, contudo. Jovem e cheio de vontade. Vontade que o impulsionava. Que o jogava para a frente. Enfrentando pobreza. Anulando dificuldades. E João Gonçalves aprendendo. No Ginásio do Crato. Na escola da vida. Na leitura do mundo. Aprendendo mais. No conhecimento: suas notas testemunhavam a excelência do cérebro e de seu espirito de luta. Entretanto precisava de ir mais à frente. Não obstante tanta pobreza. A despeito de tantos desafios. Da quase falta de tudo. É, vinte e dois anos de carência. Mas vinte e dois anos de coragem. Vontade de caminhar. De quedas, mas de pequenas conquistas e vitórias. Petrolina. Bahia. Em Salvador, uma parada. Como continuar? Ficar por aqui? Voltar? O destino era o Rio de Janeiro. Estudante sem recursos, como fazê-lo? Corajosamente - veja o amigo o que faz a vontade de vencer - , só com a coragem e a cara, como se diz, vai até o Governador que era o interventor Juraci Magalhães, levando como credencial tão somente a farda de estudante de ginásio e as notas do último ano. Com certeza fortíssimo passaporte este. E numa terceira classe (só há discriminação entre os humanos pois para os animais é um vagão só uma classe só. Gente é assim: tem primeira classe segunda terceira classe e deles que nem classe têm) numa terceira classe lá está o jovem da Vila São José, destemido carregado pela aspiração maior: Rio de Janeiro. Outro mundo grande. Cheio de escuros. De tanta gente que se fazia ruim. De tanta gente boa. De gente humana e de gente insensível.
Imagine-se por que passou o jovem de 22 anos. Pobre e sem recurso. No Rio de Janeiro. Como um sozinho em meio a tanta gente estranha. "A minha vida aqui pelo Sul tem sido agora de sofrimento. Tenho lutado até agora e ainda não pude fixar carreira. Isso porque tudo aqui gira em torno do dinheiro. Vencem, com facilidade, os mais bem recomendados. Mas os que, como eu, que me apresentei aqui sem dinheiro e sem conhecidos, sem cartas de recomendação, estão amargando para sair desta situação instável". É de 1935 este retrato de vida, no Rio de Janeiro, em carta de 29 de maio de 1935, dirigida ao seminarista Nonato, grande amigo seu. Entretanto João Gonçalves, como carente e cearense, aprendeu logo que " na vida somente se pára de trabalhar quando ela cessa". De fato: nada deixa a gente tão parado quanto a morte. Nada é tão sem gesto. Sem ação. Sem movimento. Do que o morto. Bem, trabalhar, trabalhar sempre lhe queimava a alma. Como uma obsessão mental. E foi assim mesmo: No Rio de Janeiro, foi sacristão. Varreu igreja para poder sobreviver. Para poder estudar. (Claro que ser sacristão não é diminuição. Nada disso. É tão importante trabalho como outro qualquer. Eleva e dignifica como outro qualquer.) Porque João Gonçalves foi sacristão e varreu igreja. Para poder lutar. Para aprender o mundo. Nunca desanimou todavia. A vontade de lutar e de vencer, de ir à frente, estava acima do desânimo e da inércia. Cheio de humildade, um dia disse: "Se o caminho palmilhado até aqui representava vitória para alguns, direi que esta se deva a fatores que assim resumirei: trabalho duro e sério, ajuda de conterrâneos para arranjar trabalho e poder estudar, a bênção de Deus - sempre generosa e amiga". É verdade: João Gonçalves lutou e nunca esqueceu Deus. Cresceu e nunca esqueceu Deus. Andou países e caminhou o mundo conservando Deus, sempre, consigo mesmo. Aonde ia levava Deus na lembrança e no íntimo. Conscientemente religioso. De prática e de vivência. Por isso luta, coragem, simplicidade, humildade e crença e fé mostraram-lhe os caminhos. Sem dúvida: a simplicidade o consagrou. Fê-lo grande. Pôde ele haver carregado, nas atitudes e gestos, muito orgulho e vaidade. Não o fez, contudo.
Varredor de igreja e sacristão, entrou para a faculdade e se formou. Engenheiro Agrônomo pela Escola Nacional de Agronomia, da Universidade Rural do Rio de Janeiro, no período de 1935/1939. Fez também o curso de Direito. Pela faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil, no Rio. 1935/1940. Começou a vida profissional como funcionário público. Por concurso. Do Ministério da Agricultura. Daí para a frente foi só crescimento em todos os aspectos. Ao lado do armazenamento de conhecimentos, firmava-se mais e mais a humildade e simplicidade. Assim: primeiro diretor técnico e presidente do então Instituto Nacional de Imigração e Colonização do Brasil (INIC). Organizador e primeiro diretor executivo da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural. O campo certamente estava dentro de João Gonçalves. O homem humilde do campo era sua preocupacão constante. Tudo que dizia respeito a campo aguçava-lhe a alma. Martelava-lhe o peito. Para assistir melhor, para ter soluções para os problemas do campo, para minorar o sofrimento do sertanejo, buscou sempre estudar. Aperfeiçoar-se mais. Conhecer mais. Jamais para a fama ou para a vaidade. Formado, era homem do povo. De misturar-se com o povo. De ouvir o povo. De sofrer com o povo. De buscar caminhos para o povo. É, estudou mais para ajudar mais. Para tanto, foi para longe. Para fora do país. Para outras terras. Cursou "Mister of Science", em Sociologia Rural, na Universidade de Wisconsin, Medison, Wisconsin, Estados Unidos, 1944/1946. Fez inúmeros créditos em cursos de pós-graduação, com vista ao PHD, não terminado (Sociologia comparada, economia agricola, problemas demográficos, na American University, em Washington e na Universidade de Maryland, 1957/1958.) Em face de sua experiência profissional, exerceu a função de assessor técnico do Ministério da Agricultura, no Rio por vários anos, para problemas de Economia Rural. Integrou o quadro de técnico do Ministério da Agricultura, fazendo o estudo preliminar dos municipios sob a influência de Paulo Afonso, como base para a fixação da Companhia Hidrelétrica
de São Francisco (CHESF), Foi chefe do serviço de Eoconomia Rural e diretor do Departamento de Agricultura do Estado da Guanabara. Como já vai longe quem arrastou terra para cima dos pés nas capoeiras do João Vieira. Quem ja vendera água pelas ruas empoeiradas de São José para poder estudar. Quem já havia lavado e varrido chão de igreja. Quem já teve o cargo de sacristão. É verdade: como já vai tão longe e tão alto. Mas João Gonçalves não pára por ai. Caminha além. Ele tinha consciência de que o ser humano sempre está no começo. No vir-a-ser. Melhorando sempre. Se aperfeiçoando. Assim, foi livre-docente, por concurso, da cadeira de Economia e Sociologia, da Universidade Rural do Brasil. Secretário executivo, durante cinco anos, da Comissão Nacional de Política Agrária. Sob Sua responsabilidade, estavam os primeiros estudos e projetos dos problemas da terra e da reforma agrária, no Brasil. Diretor de dois seminários internacionais, promovidos pela ONU, no Brasil, Rio de Janeiro, em 1952 (UNTA); e Seminário Latino-Americano sobre os Problemas da Terra, Campinas, 1953 (FAO). Representante do Brasil, por vários anos, junto ao Conselho da FA0, Roma e chefe-membro da Delegação do Brasil em diversas conferências internacionais, em questões econômicas e sociais, dentro e fora do continente (FAO, OIT). Delegado permanente do Brasil junto ao Comitê Intergovernamental para as migrações européias. Diretor interino do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da União Pan-Americana, de setembro de 1960 a janeiro de 1961. Diretor de Programas de Cooperação Técnica da CEA, desde 1956. Diretor do Departamento de Cooperação Técnica da União Pan-Americana, a partir de 1958. Membro fundador do Conselho "Society for lnternational Development" (entidade internacional de técnicos dedicados a programas de desenvolvimento), em Washington. A partir de 1964, ocupou a importante função de Superintendente da SUDENE. Mais tarde, em 1966, foi para a pasta do Ministério do Interior. Destacado para a Organização dos Estado Americanos (OEA), em cumprimento de várias missões, é nomeado sub-secretário de Cooperação Técnica da OEA, posto que deixaria para retornar ao Brasil que tanto amava. Sobremodo São José, a Vila São José, onde sentira os primeiros impulsos para os embates cotidianos e para as vitórias conquistadas com esforço. Com suor. Com lágrimas. João Gonçalves de Sousa percorreu dezenas de países, em missão da OEA, estudando, discutindo problemas de economia agrícola de formação de pessoal (todos os países da América Latina, Europa, Oriente Médio e Extremo Oriente). Só queria o crescimento das pessoas e o desenvolvimento das nações. Além de exemplo de homem culto, internacional, simples, humano, bom e cristão, quis deixar lições e caminhos. Por isso escreveu inúmeras monografias, artigosincontáveis, sobre assuntos da especialização, como reforma agrária, economia rural, capacitação de pessoal e assistência técnica. Entre as diversas publicações, dê-se destaque ao livro de fôlego - O Nordeste Brasileiro: Uma experiência de desenvolvimento regional. Na orelha desse livro de 409 páginas, lê-se: "... O livro que escreveu sob o patrocínio do Banco do Nordeste do Brasil S.A. reflete a sua ampla experiência de técnico e do homem público, bem como seu vasto conhecimento de sua Região e traz o depoimento sincero e original sobre a sua intensa e difícil missão na "SUDENE". (Quantos hoje não sabem ser homens públicos. Não querem ser homens públicos. Enchem-se de conhecimentos não para capacitar o outro, mas para melhor preparar barganhas e cambalachos. Para enganar melhor. Para locupletar-se melhor.) E tem mais: lá na contracapa: "... preparou este trabalho que trata do esforço brasileiro pelo desenvolvimento do Nordeste, apresentando oportunas sugestões e comentários, fruto de sua própria experiência como homem da tera e um dos grandes responsáveis pelo seu engrandecimento". Era o desejo, queimando por dentro, de ver o homem, sobretudo o homem do campo, vivendo mais dignamente. A ânsia de minorar a miséria do sertanejo. A esperança latejando na alma de melhores dias para sua gente. Esperança de ver São José melhorando. Esperança de ver os campos produzindo para a fome de tanta gente. Esperança de ver um Brasil melhor. Bem verdade: as posições que ocupou e os degraus que subiu, João Gonçalves poderia tê-los usado com ânsia de domínio e sede de fama e de poder. Não foi assim. Alguém desavisado jamais diria que foi tudo isso. Que chegou a tão alto assim. Chegou sim e nunca esqueceu as origens. Nunca esqueceu que saiu da roça. Nunca esqueceu que foi bedel de esola. Nunca esqueceu a Vila São José. Com sua gente pobre e sofrida. De longe, estava sempre pensando no Brasil. No Nordeste. Olhando para seu povo. Tentando descobrir formas de tirar tanta gente da pobreza. (Nem pode mais saber que a nossa pobreza está aumentando. Que estamos caminhando para a miséria. Que agora é que o homem não está sabendo ser homem público. Que há poucos Políticos. E tantos poilitiqueiros). De fato: de tão lá em cima, poderia haver olvidado seu lugar. Sua gente. Seu País. Seu Nordeste. Poderia haver-se envergonhado de ter nascido em berço (não teve berço, nem rede talvez) tão pobre, ocultando-lhe o nome. Absolutamente. Por onde caminhava, levava consigo a Vila. O Nordeste, o Brasil. Com sua gente. Com seus desafios. Com sua pobreza. Com sua rusticidade. Com seus sonhos e anseios. Ele escreveu: "... ainda quando estivesse muito longe, a percorrer os quatro cantos do mundo, como fiz muitas vezes, no desencargo de meus deveres profissionais, quanto mais distante me encontrasse, mais perto me sentia de minha Vila aqui no interior, entre Lavras e Várzea Alegre. Nunca passei um ano não sem que à Vila retornasse".
Entretanto o amor à Vila São José foi além. Observa-se a preocupação de João Gonçalves para que o lugar tivesse professores. Mais professores. Em carta de 18 de novembro de 1935, escreveu: "Acho que vocês devem ir diretamente ao padre Hélder cientificar-lhe o que seja a vida, em todas as
minudências, do lugarejo e, sem rodeios nem subterfúgios. mostrar-lhe a necessidade inadiável de uma professora que dê ao nosso povo uma noção ao menos do que seja a vida. Isso porque a nossa gente vive um mundo que não é esse que vivemos". E continua: "Vocês é que bem sabem como pedir exigir dos poderes competentes o cumprimento dos direitos mais legítimos do povo: a educação completa e eficiente". É a preocupação do homem culto e bom pela cidadania de sua gente. Por sua integral formação. O povo deve conhecer seus direitos. O povo precisa saber reivindicar. Só queria o bem-estar do outro. Vida digna para o irmão. E só para tanto usou o prestígio com humildade: "... como meu pai era agricultor e como eu fui um deles até a adolescência aos agricultores particularmente aos pequenos dediquei os dias mais úteis da minha vida".
A prudência foi a marca mais viva: "... embora tropeçando e caindo frequentes vezes, no sentido de ouvir a consciência, antes de decidir atos da vida ordinária ou decisões de importância, foi-me sempre tranqüilizador e útil poder confrontar, sem temeridade, o caminho de minha vida com o espelho da consciência". João Gonçalves de Sousa foi um previdente sábio: "O mundo está descrente. Os grandes centros estão se dissolvendo num asqueroso materialismo em todos os sentidos. Frágeis se tornam os laços que prendem a família brasileira. E isso aqui fora não deve atrair ninguém. Só mesmo os que, como eu, abraçaram e viveram para este ambiente e esta vida, não para vivê-la e gozá-la mas para procurar corrigi-la e dar-lhe um destino humano". Confessou esta imensa verdade, em carta de 28 de março de 1935. Sua sabedoria foi além: "O mundo está morrendo porque finge não crer e porque não mais quer ter fé". É verdade: esta declaração só pode haver saido do homem culto, Do homem internacional. Do homem simples. Do homem humilde. Do homem prudente. Do homem previdente. Do homem cidadão. Do homem aberto. Do homem amante de sua Terra e de sua gente. Do brasileiro admirável que foi João Gonçalves de Sousa. Parece que fisicamente ainda está entre nós. Dentro de São José. Porque cada pedaço da Vila parece ser a projeção de sua pessoa. O João Vieira. A Cacimba da Pedra. O Pé de Amargoso. As festas de janeiro. Porque seus gestos e atitudes em nada diminuíram na lembrança dos amigos e conterrâneos. Porque as verdades que disse e as lições que deixou continuam repercutindo, como num eco, na imaginação da gente. Além de tudo, está aí, hoje, a energia de Paulo Afonso lembrando que foi por seu esforço e trabalho que as ruas da Vila estão iluminadas. Clareando casas humildes e simples de moradores. Movimentando máquinas. Dando oportunidade de os jovens estudarem à noite. Está aí o serviço de água. Está aí a escola Paulo VI: bastou a força de seu nome para o funcionamento do ginásio em Mangabeira. Em meio à pracinha de Mangabeira está lá a estátua de João Gonçalves, simples, pobre (como ele próprio o foi). Meus amigos, não é apenas um aglomerado de concreto ou de gesso. Não, significa muito mais: foi a maneira melhor que os conterrâneos encontraram de perpetuar-lhe a presença e de repetir, sinceramente - o nosso Muito Obrigado. Por que não respeitá-la mesmo sendo uma estátua? Como esquecer figura assim? Boa assim? Culta assim? Solidária assim? Compreensiva assim? Amiga assim? Como esquecer João Gonçalves de Sousa? Entre passagens muitas de livros e artigos, transcreva-se este depoimento de João Gonçalves, que, no dizer de Paulo Peroba ( também já em outra dimensão) " é uma das páginas mais belas da fibra, tenacidade e valor de Gente Cearense:
"Como Saí do Ceará e Como Venci".
Começo por agradecer ao professor Paulo de Tarso Peroba o honroso convite que me fez em nome do Secretário de Cultura e do Presidente do Ideal Clube para receber a medalha José de Alencar e prestar este curto depoimento pessoal.
Como saí do Ceará é fácil dizer. Como venci seria partir de uma premissa que me custa admitir como indiscutível. Saí pelo Sul, subindo a Araripe, de caminhão até Petrolina e dali para Salvador, de trem. Era interventor da Bahia o tenente Juraci Magalhães, cearense como nós e amigo de estudantes sem recursos. Com a farda de meu ginásio do Crato, que acaba de cumprir seus 50 anos de fundação e com as notas das matérias do último ano, o procurei em palácio para pedir-lhe uma passagem para o Rio - a meta de minha aspiração. Depois de atentamente ler as notas, chamou um oficial de Gabinete, meu contemporâneo do ginásio cearense como eu e ordenou-lhe: "leve este moço à Capitania dos Portos e lhe obtenha uma passagem para o Rio. Mas é de terceira classe - serve? - perguntou-me ele. Claro que serviu. Com ela entrei na Guanabara, literalmente em um ita. Tinha eu 22 anos. Como venci, parece pretensioso admitir a hipótese, pois nós, cearenses, aprendemos que na vida só se pára de trabalhar quando ela cessa. Continuo na luta. Mas se caminho palmilhado até aqui representa vitória para alguns, direi que esta se deve a fatores que assim resumirei: trabalho sério e
duro, ajuda de conterrâneos para arranjar trabalho e poder estudar, a bênção de Deus - sempre generoso comigo. Menciono outras variáveis que muito me ajudaram como, por exemplo, meu pai, a conciliação entre o plano de vida e o da consciência, o olhar para os outros tanto mais do que para mim mesmo e atuar com tranquilidade e confiança nos momentos mais sérios da vida individual ou profissional. Meu pai trabalhou na roça, morreu coma enxada na mão, faltando apenas meses para a primeira formatura de seu filho mais velho - o único a quem sua pobreza pôde ajudar. Era um lutador, morreu pobre mas limpo na vida e no coração. Sempre me preocupei, embora tropeçando e caindo, frequentes vezes, no sentido de ouvir a consciência, antes de decidir os atos da vida ordinária ou decisões de importância. Foi-me sempre tranquilizador e útil poder confrontar, sem temeridade, o caminho de minha vida com o espelho da consciência. Também sempre me obstinei em olhar para os outros tanto mais do que para mim próprio. Como venho de um meio e raiz humilde, preocupei-me pelo destino dos demais. Nunca perdi de vista o desejo de entender os jovens e de encorajar-lhes a caminhada. Andei sempre ao lado deles, dentro e fora do país. Como meu pai era agricultor e como fui um deles, até a adolescência, aos agricultores, particularmente aos pequenos, dediquei os dias mais úteis de minha vida. A felicidade resultava quando estudantes tocavam em seu ideal, juntos comigo. Procurei também entender a posição dos outros. Ouvir, dialogar mesmo com os contrários, como é hoje moda no jargão do dia, foi sempre norma de vida. Este cuidado e a autenticidade dos atos salvaram-me a missão quando passei pela SUDENE, em hora crítica para a instituição e o País. E assim também foi na convivência não só com brasileiros, mas com criaturas de outras terras, outras línguas, outra fé, nos cargos que me tocava ocupar na vida. Observando uma lição dos cearenses, nunca entrei numa missão com atitudes dos timoratos. Embora sentisse que a medida de minha valia era, vezes sem conta, interior ao que de mim se esperava, lançava-me ao desafio com confiança e, às vezes, com audácia e sem medo. Afinal de contas, nasci no sertão, onde o nosso vaqueiro não abranda as rédeas de seu cavalo na hora da corrida ou à vista do perigo. Vai em frente. Sempre procurei ler e estudar muito. No ginásio, na universidade e nos cursos de especialização no exterior, procurei aproveitar todo tempo disponível para realizar o trabalho que me impunha. Às vezes tive que interromper os estudos como, por exemplo, na seca de 1932 quando esta agarrou meu pai dois tios e a mim e nos colocou numa frente de serviço aberta pelo DNOCS, entre Alagoinhas fronteira com o Ceará e Salgueiro, em Pernambuco. Mesmo aos domingos ficávamos no colégio a ler e a discutir temas literários com os colegas. Foi num desses domingos como era comum ao tempo do padre Francisco Pita, criador do ginásio e seu diretor que o Desembargador Jaime Araripe e eu ficamos a debater em público perante o colégio reunido sobre qual dos dois escritores era o maior - O nosso José de Alencar ou Machado de Assis. Tocou-me a apresentação e defesa do nosso maior romancista que, como escritor, em sua prosa de ficção, tratou de índios, mas como deputado geral por nossa Terra falou da seca de 77 como era de esperar-se de um filho desta terra. O meio onde nasci exerceu sempre muita influência em minha vida. Ainda quando estivesse muito longe, a percorrer os quatro cantos do mundo, como fiz muitas vezes, no desencargo de meus deveres profissionais, quanto mais distante me encontrasse, mais perto me sentia de minha Vila, aqui no interior, entre Lavras e Várzea Alegre. Nunca passei um ano sem que a ela retornasse. José de Alencar, cuja memória nos reuniu neste retorno de irmãos, uma vez ao explicar como e por que se tornou romancista esclareceu: "O mestre que eu tive foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente a magnificência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o pórtico majestoso onde minha alma penetrou no passado de sua pátria".
Comigo aconteceu coisa parecida.
Muito obrigado".
Observação: 1978. texto não revisado pelo autor.

Foto de Cícero Lhyma.

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