Engenho do Taquari.
![]() |
Foto de Cícero Lhyma. |
Fonte: (Extraído do Livro Taquari do Engenho de Batista de Lima).
O primeiro morador do Taquari do Engenho foi João Gomes de Oliveira, João Gomes da Estrada, casado com Ana Maria da Conceição. Ele, descendente de cristãos novos, portanto com remota origem judaica, era vendedor de jóias e outras mercadorias, pelas estradas do sertão, quando chegou à fazenda São José, futura Mangabeira. Ali conheceu e apaixonou-se por Ana Maria, filha do proprietário, Antônio Félix Vieira, e com ela se casou. Ana e João Gomes moraram um tempo na Serragem, depois se mudaram para os Torrões e finalmente para o sopé da Serra das Almécegas, onde construíram casa às margens da Estrada das Boiadas. Estavam na segunda década do século XIX.
Ali construíram uma boa casa e tiveram mais alguns filhos além dos que já tinham tido nos dois locais por onde passaram. João Gomes possuía burros de carga e intensificou a almocrevia, transportando mercadorias para médias e longas distâncias. Mesmo assim, com os filhos, mantinha uma pequena agricultura familiar. Os seus filhos que merecem apresentação aqui, para seguimento do nosso roteiro, são: Pedro Antônio, João e Joaquim Gonçalves de Oliveira. O Pedro Antônio casou-se com uma moça do Tabuleiro Comprido e para lá se mudou. João Gomes, o depois chamado Velho Joãozinho, ficou mesmo no Taquari, que veio a ser o do engenho, e Joaquim, o velho Quimquim, ficou com o Taquari do Meio.
Depois que João Gomes de Oliveira faleceu, em 1835, Ana Maria continuou viúva até 1869, quando morreu. A partir de então, as terras do Taquari do Engenho, com a partilha da herança, ficaram com o filho do casal, João Gomes de Oliveira, que era chamado de "Joãozinho do Taquari," (1826-1912). Havia quem o chamasse também de "Velho Joãozinho", afinal ele durou 86 anos. Os herdeiros de Joãozinho do Taquari, em 1916, venderam o Taquari do Engenho a José Raimundo Lima. O novo comprador tencionava cultivar um canavial e ficou no Taquari do Engenho até 1928, quando o vendeu a José Cândido de Lima.
Zé Raimundo Lima, nos doze anos (1916 a 1928), em que foi proprietário do Taquari do Engenho, plantou cana e botou um rudimentar engenho. Para plantar as canas teve que preparar a terra do baixio que era mata de arbustos e coqueiros catolés. Entretanto, quando vendeu o terreno a José Cândido de Lima, ele ainda passou quase um ano para entregar as terras. Nesse interregno, vendeu tudo que tinha de útil no sítio, inclusive, o engenho. Por isso que o novo comprador teve que começar tudo novamente, pois até cercas não existiam mais. Apenas duas casas permaneceram intactas.
O Taquari do Engenho corresponde às terras que pertenceram a José Cândido de Lima, situadas na parte mais oeste da ribeira conhecida como sítio Taquari. Dista cinco quilômetros do distrito de Mangabeira, no município de Lavras da Mangabeira, no estado do Ceará. Esse título, "Taquari do Engenho", surgiu a partir da existência do engenho de rapadura que ali foi instalado a partir de 1928, quando José Cândido de Lima comprou a propriedade. Também surgiu esse titulo pelo insistente uso do termo pela neta do patriarca, Delfina Maria Batista de Lima.
José Cândido de Lima comprou o Taquari do Engenho, ou Taquari de Cima, como também é chamado, ao seu primo José Raimundo Lima. Não foi uma compra diretamente ao Zé Raimundo, como era chamado seu primo, mas foi através do hipotecador que retinha o direito de venda diante do montante de dívidas de seu dono, provenientes principalmente de bancas de jogo que ele costumeiramente frequentava. Dizem até que uma das principais ficava no sítio Varas, do famoso proprietário Horácio Filgueiras.
Essa transação comercial, que envolveu na época, a quantia de dezoito contos de réis, foi de dificil realização por José Cândido. Daí teve que partir para pedir emprestado a juros ao senhor José Maria Ribeiro, de Aurora, com o aval do senhor Lêla Férrer, de Lavras da Mangabeira. Pago o terreno, ao desocupá-lo, consta que o proprietário sainte devastou os benefícios que a terra possuía. Queimou as cercas, queimou os pastos e derrubou as fruteiras. Zé Cândido comprador encontrou uma terra devastada.
Entretanto duas casas permaneceram intactas. Uma, do lado esquerdo do açude, à beira do caminho que leva ao Cuzeiro,
passou a ser habitada pelo novo proprietário. A outra, ao lado direito do mesmo açude, uma casa de taipa, era habitada por Joaquim de Moura. Essa casa permanece habitada e sua história é um capítulo à parte. Afinal, cada casa do Taquari do Engenho tem sua história particular que vai da construção, passando pelos seus moradores, até a situação atual. É tanto que umas não existem mais, como é o caso da primeira em que Zé Cândido e a família foram morar em 1928. Assim também não existem mais as casas dos filhos Alexandrina e Vicente, bem como as dos moradores.
As primeiras preocupações de Zé Cândido foram tapar o arrombamento que encontrara no açude velho e cultivar lavouras para o pagamento das dívidas. Começou plantando canas para a primeira moagem que já viria a ocorrer em 1929, de forma precária, com um engenho emprestado por dona Maria Luísa, dos Torrões. Ainda moeu nesse formato nos anos seguintes de 1930 e 1931. Eram uns bois de sua propriedade e outros emprestados, que moviam o engenho. O resultado era que as dívidas iam sendo pagas e já havia a produção de algodão, oiticica, carnaúba para cera e o gado aumentando diante da farta pastagem do sítio. Foi aí que surgiu a grande seca de 1932.
Essa seca teve um impacto destruidor em todo o Ceará. O Taquari do Engenho não possuía água, pois o açude velho era incipiente, naquela época, com sua parede baixa e pouco volume hídrico. Foi então cavada uma cacimba no porão do açude para abastecimento das pessoas e dos animais. Pasto não havia mais. Só as canas ainda sobreviviam. Zé Cândido teve a idéia de cancelar a moagem naquele ano de seca e colocar seu gado dentro do canavial, Só assim seu rebanho, de vacas leiteiras e bois do engenho, conseguiu alcançar o ano de 1933, e ocorrer moagem.
A partir de então as moagens se realizaram por mais de setenta anos. A produção principal era de rapadura para a comercialização e consumo familiar. O mercado consumidor principal era no município de Jaguaribe. Comboieiros com tropas de burros vinham daquele município comprar as rapaduras. O produto era colocado em surrões e acomodado com palha da cana para não estragar na longa viagem. Aqueles almocreves, com suas alimárias, passavam alguns dias embalando as rapaduras e às vezes até esperando a produção da fornalha diante da grande demanda por conta da boa qualidade da produção do engenho.
O sítio de canas situava-se todo do corredor, que fica ao pé do engenho, para baixo. Acontece que o engenho, com seu rebanho de dezesseis bois para puxá-lo, e a fornalha apenas mediana, só conseguia produzir, no máximo, dez cargas de rapaduras por dia, ou seja, mil rapaduras de setecentos gramas. Foi aí que Zé Cândido, um inteligente empreendedor, pensou grande. Já estava na década de 1950 e resolveu investir, sem apelar para empréstimos, e terminar o novo açude, ampliar o canavial e aumentar a parede do açude velho. Zé Cândido, no final da década de 1940, começara a
construção do açude novo, para represar as águas dos três bons riachos da Sipaúba. Sipaúba era uma parte inóspita do Taquari do Engenho, no seu lado mais oeste, limitando-se com o sítio Sapé. Com a construção do novo açude, a água represada criou umidade aquém de sua parede e proporcionou condições para a produção canavieira, afinal, o açude velho só dispunha de águas para terras do corredor do engenho para baixo. Com o crescimento do açude novo, um outro sítio começou a surgir acima do corredor. Para isso, todo ano, com o apurado da rapadura, ele mandava construtores levantar "um pé por fora" no seu açude novo.
A construção principal de Zé Cândido, entretanto, foi a família. Casado com Joana Guedes de Lima, com ela tiveram onze filhos, sete mulheres e quatro homens. São: Maria Tereza de Lima (Tedeza), Maria Alexandrina de Lima (Xandina), Maria José de Lima (Santa), Raimundo Cândido Neto, Joana Cândido de Lima (Joanila), Maria Cândido de Lima (Nenem ou Mateta), Maria de Lourdes Lima (Dolores), Vicente Cândido de Lima, Francisco Cândido de Lima (Canlima), Raimunda Cândido de Lima e Manoel Cândido Sobrinho (Senhor). Desses, apenas Canlima não se casou. Todos os outros se casaram e tiveram filhos, constituindo inúmeros netos para Zé Cândido. As casas têm sua história particular. A primeira delas, a de João Gomes da Estrada e Ana Maria da Conceição, foi construída no sopé da Serra das Almécegas, á beira da Estrada das Boiadas, o que hoje representa a represa do Açude Velho. A casa virada para o nascente, dava visão para as Balanças, que é uma baixada entre as duas serras, a das Almécegas e a do Cruzeiro. É o local onde as águas se dividem entre o Taquari e o Limoeiro. Frente à casa havia um pé de cajarana que durou até tempos recentes. Hoje só restam vestígios como um pedaço de telha e a clareira na mata que a rodeava. A segunda casa do sítio, por ordem de antiguidade, foi construída por João Gomes de Oliveira, que viria a ser chamado Joãozinho do Taquari ou ainda Velho Joãozinho, filho de João Gomes da Estrada. Essa casa foi construída em 1849 quando Joãozinho casou-se com Maria Joaquina de Oliveira. Era uma casa erguida na lombada à margem esquerda do riacho, atrás de onde André Pinheiro construiu sua casa, quando casou-se com Santa tempos depois. A casa de Joãozinho era privilegiada. Virada para o nascente,foi a casa que ficou em região mais elevada do sítio, até hoje, dando-lhe uma visão panorâmica do horizonte. Hoje existem leves escombros dessa construção e um resistente pé de cajarana. Além do engenho, produzindo rapaduras, uma mini-indústria, havia o tear. Redes e lençóis foram ali produzidos por mais de vinte anos. Na seca de 1932, Antônia Guedes, madrasta de Nuca, como era chamada Joana Guedes de Lima, esposa de José Cândido, mudou-se para o Taquari e instalou o tear na casa velha, ao lado da futura casa dos donos da terra. Essa casa existia quando o terreno foi comprado e era ocupada por Joaquim de Moura, morador de Zé Raimundo Lima. A casa ainda existe, modificada, foi armazém e sede do tear que também foi utilizado pelas filhas Joanila e Maria Tereza. Hoje, habitada, a casa mais antiga do Taquari do Engenho é exatamente essa do antigo tear, e já existia em 1928. Ela serviu também de armazém tanto para Zé Cândido, quando tirava suas moagens, como para Nequinho, seu neto primogênito, que continuou administrando o engenho. Nela moraram Maria Tereza, Xandina, depois Vicente Cândido e, finalmente, hoje é habitada há bastante tempo pelo morador Seu Damião, casado com Dona Geralda. Quanto à outra casa existente por ocasião da chegada em 1928, onde a família foi morar, era antes habitada por Zé Raimundo Lima. Dela só restam hoje alguns escombros.
Era uma casa que não possuia uma boa visão do nascente, pois á sua frente fica o morro do Cruzeiro, tapando a visão dos relâmpagos, o surgimento das chuvas, o nascer do sol e o despontar da lua cheia. Afinal, é uma tradição dos nossos sertões, a construção das casas em lugares elevados e voltadas para o nascente.
O Engenho do Taquari teve três administradores. O primeiro foi José Cândido de Lima, o proprietário, de 1929 a 1962. Foram 34 anos de crescimento do canavial e das temporadas da moagem. O grande acontecimento desse período ocorreu em 1956, quando o engenho deixou de ser movido a boi e passou a ser movido a motor. Em 1963 a administração passou aos cuidados do neto primogênito de Zé Cândido, Manuel Gonçalves Torres, conhecido como Nequinho. O novo administrador ampliou a fornalha, plantou mais cana e chegou a produzir trinta cargas de rapadura em um só dia, recorde. Depois de 35 anos, em 1998, Nequinho passou o cargo a Raimundo Antônio de Oliveira, outro neto, que ficou até 2007. Nesse ano o engenho parou de funcionar. Agora, a partir de 2021, voltará a funcionar sob a direção de outro neto, Raimundo Batista.
José Cândido de Lima se transformou em um fazendeiro respeitado por toda a região de Mangabeira e no município de Lavras. Dono de engenho e tear, açudes, gados e roças de algodão, começaram a aparecer os agregados, além dos moradores e dos trabalhadores das moagens. As arrobas de algodão eram vendidas na vila. As represas dos açudes e as margens do sítio eram propícias para o plantio. As cargas saiam no final da colheita. Os tropeiros Zuza Valério e Doca Valério, com seus burros de carga, transportavam as arrobas de algodão. Eram sacos de estopa que eram enchidos e socados com os pés para acomodar o máximo das plumas.
Havia no sítio, portanto, moradores e agregados. As famílias de moradores mais destacados foram os Valérios e os Macários. A família Valério possuía homens fortes de estatura acima da média e eram de cor branca. Homens pacatos e estimados pelo patrão. Eram José Valério, Caetano, João e Chico. A mãe deles era a viúva Dona Jovilina. As filhas eram Quitéria, Helena e Valderice. Os Macários eram pardos e os pais eram José Macário e Dona Mercedes. Tinham como filhos trabalhadores: Manuelzinho, Assis, Cícero e Luís. Ficaram no Taquari por bastante tempo e eram exímios trabalhadores do engenho. Cícero tornou-se violeiro.
Três agregados se destacaram: Francisca Ribeiro de Freitas, Zuleide e Afonso. Francisca era filha de um cidadão morador do município de Cedro. Da idade das filhas de Zé Cândido, era bela, de porte esbelto, corpo de bailarina. Na casa dos pais, passou a ser assediada por um rapaz vizinho que não era confiável. O pai trouxe-a para o Taquari para ficar sob a proteção do seu amigo José Cândido. Logo que chegou, conquistou a amizade dos filhos do fazendeiro. Coincidiu sua chegada com o episódio do falecimento do esposo de Maria Tereza, Chiquinho (Francisco Gonçalves Torres), deixando quatro crianças órfãs. Por isso que o fazendeiro trouxe a filha e os netos para sua casa e Francisca passou a ajudar na criação.
Francisca conquistou a amizade e a confiança da família Cândido, além do afeto das crianças. Acontece que depois de certo tempo, o pai de Francisca veio buscá-la de volta. Foi uma choradeira enorme das crianças. Os meninos desfizeram as sacolas com as vestimentas de Francisca e com ela se agarraram para que não fosse embora. Diante do quadro estampado, Zé Cândido ponderou diplomaticamente com o pai da moça para que ela ficasse mais uma temporada. Depois de muita conversa, o pai de Francisca voltou sozinho para alegria das crianças.
A moagem era um ponto de encontro entre trabalhadores e as moças puxadoras de alfenim. Alguns casamentos ocorreram sob a égide da rapaduridade. Francisca foi um dos casos. Começou um flerte e depois um namoro com um combiteiro chamado de José Alves de Freitas, (Zé Agua). Homem sério, respeitador e muito trabalhador. Era do gosto de Zé Cândido e Nuca. Nos fins de semana, ele passou a frequentar a casa grande, e à noite namorava Francisca. Sentados nas cadeiras da calçada, ele conversando com José Cândido, e Francisca de seu lado esquerdo, calada, ouvindo. Foi assim até se casarem.
Quando chegou a época do casamento, o pai de Francisca apareceu no sítio para proibir o enlace. O motivo era simples, Zé Agua tinha lábio leporino, defeito fisico congênito que o acompanhou pela vida toda. O pai de Francisca vetou o casamento por conta desse detalhe e veio para levar a filha de volta para casa. Foi então que toda a família Cândido em especial o patriarca se empenharam em convencer o pai equivocado das suas pretensões. Depois de muita negociação o pai de Francisca voltou mais uma vez sozinho para suas terras e a filha casou-se com seu querido Zé Agua.
Foto Tirada do Livro.
Taquari do Engenho.
Foto Tirada do Livro.
Taquari do Engenho.
Vídeo de Quintina.
IMAGENS.
![]() |
Foto de Cícero Lhyma. |
![]() |
Foto de Cícero Lhyma. |
![]() |
Foto de Cícero Lhyma. |
Fonte: (Extraído do Livro Uma Casa Toda Mãe de Batista de Lima).
A Última Moagem.
Depois de oito décadas de funcionamento, fechou suas portas, o engenho Taquari. No local do carnaval, os animais se alimentam dos últimos pâmpanos que teimam em sobreviver à morte sobre o massapé massacrado pelo peso da modernidade encangada na globalização. "Navegante" e "Rapé", "Chuvisco" e "Surubim", aquele quarteto de bois que arrastaram o engenho nos seus tempos áureos, hoje debatem-se e esperneiam no céu dos bois mansos. O engenho fechou porque ninguém quer mais rapadura. Cada rapadura pesava 700 gramas de glicose, suor e história. No tempo em que o engenho era puxado por bois, a produção era menor. Na década de 1950, os bois foram vendidos e foi comprado o motor a óleo diesel que funcionou até os anos setenta. Foi aí que a energia chegou ao sítio e um pequeno motor elétrico e silencioso passou a puxar o engenho.
Por todo esse percurso, dos anos trinta ao último mês de julho, esse engenbo produziu milhares de cargas de rapaduras que eram comercializadas na região e exportadas, às vezes, para as cidades de Cedro e Jaguaribe. Era uma micro-indústria que funcionava três meses por ano. O engenho fica no Sítio Taquari, distrito de Mangabeira, município de Lavras. Está encravado na divisa entre o Sertão Central e o Cariri cearense. Mas a partir de agora fica encravado entre a inviabilidade econômica da sua produção e o cabedal de memórias que plantou em três gerações da família Cândido de Lima.
José Cândido de Lima, seu fundador, meu avô materno, conseguiu sua construção logo que comprou a fazenda Taquari no final da década de 1920. Como já vinha de outro sítio onde possuía engenho, continuou com a tradicional rapaduridade que marca a família por ancestralidades que se
aprofundam no chão dos tempos. O mês central da moagem sempre foi julho, mesmo durando, às vezes, até três meses de fornalha acesa. A última moagem só durou quinze dias do último mês de julho. O período da moagem sempre configurou-se um momento de festa, que só tinha parelha com a do padroeiro São Sebastião, na vila, em janeiro. De forma que as pessoas sempre viveram dois momentos de festa: em julho, moagem; em janeiro, novenas. Para quem nasceu e se criou na sua bagaceira e viveu madrugadas de garapa doida e anoiteceres de histórias de valentia, fica a impotência do nada poder fazer. Até o nó no peito, de tanta angústia, se nega a transformar-se em inspiração e dela passar às palavras, e destas pular para os versos. O mesmo aconteceu quando eu quis fazer o poema da rapadura. Não saiu. Foi preciso que, no lançamento do meu livro de poemas "Engenho", em 1984, no BNB, eu entregasse a cada comprador do livro, urna rapadura, como um poema que se negou a virar palavra.
Pois aquele casarão fantasma no meio da caatinga também se nega a virar poema. Lá está ele encravado entre os dois açudes, duas lágrimas que nunca secaram. Lá está ele debaixo de um céu tão azul que é um retrato que o mar lhe mandou. Lá está o velho engenho impotente de resfolegar o hálito do mel queimado, e apunhalado pela corrosão impiedosa que o tempo armou. Agora vou ter que hospedar na memória: cortadores de cana, cambiteiros, tombadores, tronqueiros, bagaceiros, botadores de fogo, caldeireiros, corta-meles, mestres e caixeadores. Depois de hospeda-los, tentarei fazer
com que produzam rapaduras, alfenins, batidas, mel e garapa e até canaviais com seus pendões alvacentos acenando adeuses e alvíssaras. Ah! Engenho velho! Escolheste morrer com a mesma idade com que teu criador se foi. E vais levando no teu regaço moendas gulosas, caldeiras fumegantes, gamelas pacientes e rebeldes tibornas. Quanto à almanjarra,
jamais deixarei de montá-la e mirar em cada boi e em cada trabalhador a semelhança que os aproximava.
Todavia, olhando de fora para dentro, diante do fechamento de uma pequena empresa, vê-s a morte de uma fonte de emprego para os sitiantes. Não era só a moagem que empregava. Eram também o plantio e o replantio da cana em outras épocas do ano. Eram a limpa da soca e o roçar do mato
no final do inverno.
Tudo isso era fonte de emprego e renda. Será que a prefeitura do município não teria como dar destino à produção, tendo em vista que nesses oitenta anos apenas arrecadou impostos das cargas de rapadura que saíam do sítio? Sinal dos tempos. A morte de um romantismo glicosado que o riacho do progresso arrastou como um balseiro do sem jeito. A serra ao lado, enorme serra das Almécegas, testemunha daquela chaminé afogueada, secou de chorar a morte do verde canavial. Os trabalhadores estão silenciosos diante dos aparelhos de TV que as antenas parabólicas povoam com imagens de um mundo de brilho, lá de longe. As antigas lamparinas transfiguram-se em potentes fluorescentes que envergonham de nudez os mais recônditos monturos de escuridão noturna. A lua deixou de luar. Os cavalos foram atropelados pelas motos, e as vacas leiteiras já vêm enlatadas sem berros sem crias. A curimatã dos açudes foi comida pelas tilápias e as jandairas vítimas das italianas. Só faltava o velho engenho tombar exangue a essa avassaladora onda de progresso.
De agora em diante, só os fantasmas, nos pés de sera e no vaivém dos cancelões . "Na casa velha/ a porta aberta/ gritando rouca/ por taramela./
Na cerca ao lado/ um roupão branco/ pula teimoso/ sem vestir nada./ Na almanjarra/ um homem jaz/ limpando os dentes/ de uma boiada./ Pelas moendas/ desfila a dor/ que se machuca/ e se refaz./ Já das caldeiras/ pulam touceiras/ são rapaduras/ voltando a cana". E, agora, que a moagem é uma
saudade, só resta, na alma, essa tiborna, que, de tudo que se perde, é o pouco que ainda retorna.
![]() |
Foto de Cícero Lhyma. |
Em 17 de Julho de 2021, é lançado o livro Taquari do Engenho, do escritor Batista de Lima.
O livro foi lançado no taquari mais precisamente na casa grande de Zé Cândido.
Batista de Lima fala no livro sobre a história do engenho do taquari que teve como fundador o senhor José Cândido de Lima, Francisco Batista de Lima conhecido como Chico de Osmundo, e Raimundo Batista que foi o reativador da moagem em 2021.
Foto de Cícero Lhyma.
*Em 19 de setembro de 2012 foi realizada uma pesquisa com Antônio Aristides Ferreira e Tributino Guedes Dias no Distrito de mangabeira sobre os engenhos que ali existiam.
Foto de Auderlânia Dias. |
Foto de Auderlânia Dias. |
Foto de Alencar Lemos.
Foto de José Islan.
Foto de Raimundo Teixeira.
![]() |
Foto de Mazé Vieira. |
O Tear de Maria Teresa.
Fonte: (Extraído do Livro Uma Casa Toda Mãe de Batista de Lima).
A colheita do algodão estando para ser realizada, às vésperas, Maria Tereza ia colher os melhores capuchos para alimentar o seu tear. Antes, porém, tinha que descaroçar tudo o que havia colhido, e depois batia para que as maçãs de fibra se entrelaçassem, formando uma grande e única unidade.
Passo seguinte era cortar tiras daquela lã e colocá-las nos fusos. Eram fusos porque, para fiar tanto algodão, era convocado um adjunto de mulheres da região que vinham fiar seus novelos de fios branquinhos.
Maria Tereza era irmã mais velha de minha mãe. Casara cedo e cedo ficara viúva, com três filhos para criar. Montou o tear como forma de sobreviver independente da ajuda que vinha do meu avô. Era um tear que ocupava uma sala inteira de uma casa antiga que ficava entre a casa grande de seus pais e sua moradia. Ali ela passava os dias tecendo redes e lençóis. A qualquer hora do dia, ouvia-se o barulho daquela engrenagem de madeira. Os fios iam saindo e formando o mamucabo ao se entrelaçarem como palavras que formam frases.
Eram muitas as irmās de Maria Tereza, e todas tinham muitos filhos. Ela, além de fiar redes para os parentes, ia também acompanhar os resguardos de cada uma, ficando algum tempo como babá dos recém-nascidos. Daí que ao crescermos, tínhamos um afeto especial por aquela tia, a quem chamávamos Tedeza. Seus carinhos, em especial seus cafunés, nos acompanharam na vida como memória viva. Era a segunda mãe de todos os sobrinhos. Botava-nos a dormir com belas canções de ninar e cuidava das irmãs parturientes com desvelo e ternura especiais.
Tedeza não fazia apenas tecidos. Ela parecia tecer poemas. Suas redes eram como palavras felizes que, depois de unidas, formavam fios, frases entrelaçadas no tecido textual. Eram tecidos de afetos avarandados que promoviam sonos e sonhos reconfortantes. Dormir nas suas redes era desfrutar de seus cafunés, que iam brotando na memória impregnada de infância. Mas não era uma infância apenas pessoal. Era uma infância das coisas, que passava a nos embalar. É tanto que nesses momentos o engenho passava a funcionar, puxado por bois obedientes, a fornalha regurgitava de mel cheiroso e era possível vislumbrar meu avô confabulando com as rapaduras.
Foi inspirado nessas imagens inapagáveis que também me meti a querer tecer minhas redes. Comecei procurando no roçado da linguagem as palavras que sorriam para mim. Sempre gostei de palavras simpáticas, daquelas que nos abraçam e nos inspiram a vasculhar sonhos. Essas palavras são tão amáveis que se ligam umas às outras, produzindo frases de sentidos inesperados. São adjuntos de fiandeiras como abelhas em colmeias. Daí, quando menos se espera, elas já produzem parágrafos, como favos. Nesses momentos a gente se põe à margem da construção e até parece que palavras, frases e parágrafos entram em conluio para terminarem o texto. É o milagre da criação.
A escrita é, portanto, uma tessitura, porque, além da tecedura verbal, o texto adquire uma musicalidade que oscila entre pauta e frase. Acontece que o tear de Tedeza também era musical. O movimento que ela fazia com os pés naquelas tábuas que moviam o tear provocava um som concatenado de onde evoluia um ritmo de percussão. Acredito que nós, que convivemos com aquela melodia desproposital, tenhamos sofrido influência no ritmo do que compomos. Tedeza imprimia musicalidade em tudo o que fazia.
Não era apenas do tear que evoluía ritmo. Havia na cozinha da casa grande um pilãozinho de pilar temperos, principalmente pimenta do reino. Aliás, todas as casas possuíam esse instrumento. Acontece que o da casa dos nossos avós era especial, porque era Tedeza que pilava os temperos na janela da cozinha, que ficava virada para o norte. Ali, ela, ao pilar, promovia um batuque tão ritmado que chamava a atenção de todo mundo, pois só ela sabia fazer aquilo. Da mesma forma, seus cafunés, sua voz, seu andar, tudo era ritmado.
Tedeza nos deixou aos 98 anos e foi batucar no céu. Lá ela deve estar tecendo redes, e pilando temperos. Ela deve ser consciente de que sua herança, ficada entre os que com ela conviveram, permanece viva. Algumas de suas redes ainda hoje são guardadas por familiares. Depois que ela desativou o tear, os algodoais morreram de tristeza. Mesmo assim, aqueles lençóis brancos, aquelas varandas de desenhos variados, além de povoarem alguns baús, ainda alimentam nossa memória. Tedeza se foi, mas até hoje não conseguiu nos deixar sozinhos.
Comentários
Postar um comentário